Além das aparências

Impressões Aleatórias
3 min readAug 3, 2023

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Fugindo um pouco do padrão da aleatoriedade, o que me levou a escrever minhas impressões sobre o romance O crime no Edifício Giallo, de Luiz Biajoni, foi uma certa dose de incômodo e constrangimento. Não em relação ao livro, claro, que me proporcionou umas boas horas de entretenimento, e sim a um comentário que li a respeito, que o trata como uma história de mistério tradicional, mede suas premissas com a régua errada e rotula como defeito aquilo que aparentemente não entendeu.

Afinal, um livro com o título O crime no Edifício Giallo jamais poderia ser um whodunnit, só poderia ser… um giallo, ora. E, em um giallo, a intenção não é criar um mistério com elementos sutis espalhados pela trama, uma caracterização aprofundada da psicologia dos personagens e pistas falsas engenhosas que levam a intrigantes becos sem saída. Quem aperta o play para assistir a um giallo sabe que vai estar diante de uma história de crime, mas também deve compreender quais são os seus principais recursos narrativos: o sangue, o sexo e o sobrenatural. Mais do que com o cerebral, o giallo dialoga com os chamados baixos instintos; mais do que com o impactante, dialoga com o explicitamente chocante; mais do que com o criminal, dialoga com o devasso; mais do que com o surpreendente, dialoga com o assustador. É preciso saber disso para ler o livro? Não, mas qualquer tentativa de analisá-lo ou esmiuçá-lo sem essas chaves interpretativas básicas do gênero provavelmente vai acabar se revelando um exercício de procurar chifre em cabeça de cavalo.

Afinal, em um gênero apelidado de spaghetti thriller, não causa estranhamento encontrar personagens com nomes como John Baxter, Christian Pete, Frank Lacalle etc. Em um gênero com elementos tão presentes de sexploitation, é natural que, mais do que a psicologia dos personagens, o que se mostre é o que eles fazem, ou desejam fazer, na cama. Em um gênero que se vale da atmosfera dos filmes de terror, é natural borrar as fronteiras da realidade com alucinações, lapsos de memória, sonhos vívidos e percepções errôneas. Em um gênero que contém em seu cerne o sobrenatural, é esperado que a solução convencional de um mistério não explique toda a verdade por trás do caso. E tudo isso está lá, escancarado na trama criada por Biajoni.

Em uma primeira camada, portanto, o que se tem é uma espécie de tributo a um gênero, com direito até a uma trilha sonora para estabelecer ainda melhor o clima. Mas também se trata de uma trama ambientada no Brasil, e essa escolha não é gratuita. Seus personagens fazem parte de uma certa elite econômica dos centros urbanos interioranos, com seu comportamento tipicamente classista, racista e homofóbico, além de sua conduta corporativista, corrupta e muitas vezes criminosa. Nesse nível que vai um pouco além da aparente trama de mistério, o que se tem é o uso muito bem sacado de um gênero bastante improvável para compor um comentário social cortante e afiado sobre aqueles bolsonaristas que moram no prédio mais caro da sua cidade.

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Impressões Aleatórias

Escrevendo aleatoriamente sobre livros que chegam ao sabor do vento. Por Alexandre Boide