Criação e fuga de um inferno particular

Impressões Aleatórias
4 min readApr 2, 2024

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Que o mundo (ou a realidade), assim como a narrativa ficcional, seja uma criação (ou projeção) da mente não é uma afirmação universalmente aceita. No entanto, em certos contextos, alguns indícios dessa proposição vêm à tona com mais força, e uma reflexão a respeito pode se tornar inevitável. Uma das circunstâncias mais óbvias é aquilo que se convencionou chamar de lavagem cerebral, que em termos mais simples pode ser descrito como uma forma alternativa de narrar as aparências que para a mente são percebidas como fatos e fenômenos (e portanto recriá-los, ou projetá-los sob outra luz). Ainda que em grande escala (em episódios até hoje justificados como delírios coletivos) essa reconfiguração (mais comumente vista como distorção) pareça mais assustadora (materializada em cruzadas, pogroms, Einsatzkommandos ou jihads), é em uma escala menor que a atuação individual de cada mente se torna mais rastreável e passível de um processo de reconstituição, e a facilidade de manipulação da frágil matéria-prima denominada mundo (ou realidade) se revela de forma bastante visível. O material documental nesse sentido inclusive é extenso, como nos relatos sobre o Helter Skelter de Charles Mason ou o ki-suco envenenado de Jim Jones, para ficar só em dois casos infames.

Mas não é preciso ir tão longe para termos vislumbres de argumentos talvez favoráveis a essa afirmação não universalmente aceita. Por mais que façamos força para acreditar em uma realidade concreta, que faz parte de “um grande esquema de coisas”, estamos o tempo todo transitando entre nossos próprios microcosmos, habitando nossos “universos paralelos”, por assim dizer. Uma mesma mulher pode ser para alguns a professora, para outros a mãe e, para outros ainda, a amante. A um homem a quem cabe a descrição de funcionário basta descumprir um certo item de regulamentação para receber o rótulo de criminoso. São diferentes papéis que todos somos chamados a desempenhar e reconhecemos com naturalidade, mas nem sempre consideramos que essa fluidez na nossa autoidentificação seja um sinal de que a realidade que vemos como tão sólida pode ser mais imputada do que concreta. Afinal, se estamos cumprindo papéis, um de nossos compromissos principais é com a continuidade narrativa — e de fato temos mecanismos atuantes de punição a quebras de coesão e coerência (um sujeito aparentemente ordeiro e pacato que se torna um extremista político-religioso com ideias violentas, por exemplo, para ficarmos em casos comuns e recorrentes em nossos dias), que vão desde a censura social até a interdição completa de um indivíduo por uma suposta insanidade.

Equilibrados como estamos em fundações tão frágeis, torna-se necessário um sistema de autoproteção contra a facilidade com que em tese podemos renegar um papel ou um contexto narrativo, por exemplo com afirmações taxativas do tipo: “algumas coisas simplesmente são”. É com base em convenções precárias — tanto essa como muitas outras — que tentamos atribuir um caráter sólido a um mundo (ou realidade) igualmente precário. E em certa medida, quando o contexto é favorável (ou seja, nos coloca em uma situação não tão desprivilegiada dentro do status quo reinante), muitas vezes essa defesa é considerada suficiente. O grande porém é que, por ser insustentável na prática, de nada nos serve para nos proteger de uma greve ameaça: nossa extrema vulnerabilidade a manipulações narrativas. E não é preciso cair em uma seita ou coisa do tipo para alguma coisa que “simplesmente é” deixe de ser. Basta conviver com uma única pessoa — algo a que naturalmente todos estamos sujeitos.

Em Boca de cachorro louco, relato autobiográfico de Kah Dantas, a autora investiga a fundo essa fragilidade humana em um dos microcosmos em que isso mais se faz notar: em um relacionamento afetivo/emotivo/sexual. Em uma escavação de múltiplas camadas emocionais que se dá na forma da reconstituição de diferentes episódios, sua história mostra como algo que é visto como “uma coisa que simplesmente é” — um relacionamento abusivo — por um bom tempo pode deixar de ser, graças a uma manipulação narrativa constante e perniciosa por parte do companheiro (se é que esse termo pode ser aplicado aqui). Por meio de cenas muitas vezes liricamente narradas, ela reconstrói seu envolvimento com o outro e a consequente redução de seus horizontes até se ver presa em um universo restrito a quatro paredes, onde todo tipo de maus-tratos e violências corporais e psicológicas se torna possível.

E, com a mesma disposição a assumir suas verdades de alguém que foi destituída a ponto de não ter mais nada a esconder, ela então reconstrói seu caminho de volta — conta como recuperou pouco a pouco o controle (ou ao menos o controle que é possível) sobre suas emoções, seu corpo e por fim sobre sua narrativa, e por extensão sua realidade. Por mais que nunca deixe de se apresentar como um relato sobre as interações entre duas pessoas a partir da perspectiva de quem narra, em última análise o livro se destaca por ser uma história de perda e recuperação da autonomia individual ou, retomando os termos usados até aqui, da capacidade de uma mente de criar um mundo. Ainda que não se trate de uma proposição universalmente aceita, não me parece ser algo a se perder totalmente de vista. Afinal, o que não falta são pessoas para nos dizer que “algumas coisas simplesmente são” (“essa daí sofre porque quer”; “se tá com ele ainda é porque gosta de apanhar”; “tem mulher que nunca vai aprender a se dar ao respeito”; etc. etc. etc.).

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Impressões Aleatórias

Escrevendo aleatoriamente sobre livros que chegam ao sabor do vento. Por Alexandre Boide