Fragmentos de um “eu” desmoronado

Impressões Aleatórias
3 min readNov 16, 2023

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Em março de 2018, foi noticiada a morte de um escritor brasileiro, “encontrado próximo do prédio onde morava” aos 29 anos de idade, por “bombeiros acionados por uma suspeita de queda”. O não-esclarecimento do incidente, nesse caso, servia como um esclarecimento por si só, e as ondas de choque desse abalo não demoraram a ser sentidas. Pouco mais de um ano depois, era publicado Crocodilo, de Javier Arancibia Contreras (Companhia das Letras, 2019), romance em que o pai de um jovem documentarista que se atira da janela do apartamento investiga seu suicídio em busca de uma explicação e, ao analisar obsessivamente as múltiplas facetas e versões do único filho (e, por consequência, de si mesmo e de sua mulher, as pessoas que o criaram), acaba se deparando com o caráter fugidio daquilo que denominamos como “eu” e com a impossibilidade de conhecer quem quer que seja como algo além de uma somatória em constante mutação de circunstâncias e experiências.

Os pares de sapato não acompanham as quedas, de Maria Eugênia Moreira (Editora Reformatório, 2023), é uma novela breve que parte de um acontecimento inicial similar: um jovem, também filho único, que se atira da janela do apartamento. Aqui, porém, o ponto de vista é o da mãe, e a matéria que compõe a narrativa é a ruptura, o desmoronamento e a tentativa de reconstrução. Se por um lado o protagonista de Crocodilo se vê perplexo com a reação da esposa e busca na maior parte do tempo fora de si mesmo uma forma de lidar com o inexplicável, a narradora de Os pares de sapato… compreende sua incapacidade de se reconciliar com o processo de assimilação de perda do marido, muitas vezes preocupado com questões meramente “logísticas”, e mergulha em sua própria psique fraturada à procura de alguma forma de lidar com as lacunas surgidas onde antes havia um território mapeável.

Em meio ao luto, a delimitação do “eu” se torna ainda mais instável e movediça à medida que as imputações que delineiam seus contornos mais amplos vão perdendo suas bases: não estão mais lá para ser exercidos o papel de esposa, de professora e principalmente o de mãe ― aquela que parecia ser a mais sólida e estável das âncoras de identidade, a ponto de sequer existir uma palavra para expressar o conceito de uma mãe que perde os filhos, da mesma forma que uma menina pode ser tornar uma órfã, ou uma mulher, uma viúva. O que pôr no lugar do vazio de um “eu” desmoronado? Essa parece ser a principal questão de uma obra que, mais do que tentar oferecer explicações, se ocupa de fazer as perguntas certas, aquelas cujas respostas nos aproximam do cerne do sentido da vida.

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Impressões Aleatórias

Escrevendo aleatoriamente sobre livros que chegam ao sabor do vento. Por Alexandre Boide