O futuro é primitivo

Impressões Aleatórias
4 min readAug 31, 2023

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Uma das coisas que me parecem mais interessantes na ficção brasileira atual é a exploração da potência política da chamada literatura de gênero. Talvez sobretudo porque o impensável se tornou politicamente possível, um certo minimalismo introspectivo ― “histórias intimistas que poderiam ter se passado há cinquenta anos […] num mundo de cores pálidas e cheirando a poeira e talco”, como escreveu um dos grandes expoentes do new weird, o italiano Valerio Evangelisti (“Espelho do mundo atual”, Le Monde Diplomatique Brasil, ago. 2000) ― parece cada vez mais incapaz de dar conta de se relacionar com a realidade. Até por seu próprio “maximalismo”, por assim dizer, a ficção especulativa joga inevitavelmente a agência política do indivíduo para o primeiro plano, mesmo em amargas distopias que relatam os mais dolorosos fracassos.

O romance Uma chance de continuarmos assim, de Taiasmin Ohnmacht, é uma ficção científica explosivamente política. À primeira vista, circula pelas searas da viagem no tempo, do afrofuturismo (com o reconhecimento e tributo à influência de Octavia Butler logo nas primeiras páginas) e por uma espécie de anarcoprimitivismo, por falta de um termo mais preciso. No entanto, também logo de saída, fica claro que a intenção aqui não é navegar pelas eras, como faria o viajante no tempo convencional, e sim fundir os três tempos ― embrenhar-se não em seu caráter ilusório de uma sucessão ordenada de eventos, e sim em seu aspecto não tão facilmente visível de simultaneidade ininterrupta. Embora a jornada de sua heroína seja linear, partindo da confusão para o esclarecimento, em sua trajetória o passado, o presente e o futuro estão envolvidos em interações constantes que se dão em momentos de intersecção sempre urgentes, permeáveis e, por isso mesmo, frágeis como o próprio planeta e a humanidade.

No elemento mais abertamente sociopolítico de sua ambientação, a fratura mais do que evidente de uma fração de bilionários que deseja colonizar o espaço é levada às últimas consequências, e a tarefa de salvar a Terra e os humanos restantes cabe aos meros mortais desprovidos de dólares ― levando uma tecnologia do passado na prática abandonada no presente a dar um salto direto para o futuro, estabelecendo um equilíbrio próximo àquele pregado pelo que se convencionou chamar de anarcoprimitivismo.

E, obviamente, não se trata de tecnologia no sentido que atribuímos hoje ao conceito, e sim a algo como o que descreveu Pierre Clastres em seu artigo clássico dos anos 1970: “Se entendermos por técnica o conjunto dos processos de que se munem os homens, não para o domínio absoluto da natureza (isso só vale para o nosso mundo e seu insano projeto cartesiano cujas consequências ecológicas mal começamos a medir), mas para garantir um domínio do meio natural adaptado e relativo às suas necessidades, então não mais podemos falar em inferioridade técnica das sociedades primitivas: elas demonstram uma capacidade de satisfazer suas necessidades pelo menos igual àquela de que se orgulha a sociedade industrial e técnica. […] Não existe portanto hierarquia no campo da técnica, nem tecnologia superior ou inferior; só se pode medir um equipamento tecnológico pela sua capacidade de satisfazer, num determinado momento, às necessidades da sociedade. E, sob esse ponto de vista, não parece de forma alguma que as sociedades primitivas se mostraram incapazes de se proporcionar os meios de realizar esse fim (“A sociedade contra o Estado”, in A sociedade contra o Estado: Pesquisas de antropologia política. Trad. de Theo Santiago. Cosac Naify, 2003).

Na ambientação afrofuturista do romance, essa tecnologia não está em algum um dispositivo científico moldado no presente, e sim em um sistema ancestral de transmissão de conhecimento: as adinkras, símbolos representativos de conceitos e aforismos que somados compõem uma complexa e valiosa visão de mundo. Neste caso, mais especificamente, dois deles: o de Sankofa, associado a um provérbio que pode ser traduzido como “Não é tabu voltar para trás e recuperar o que perdeu”, respondendo pela forma como o futuro recorre ao passado para ganhar nova vida e o passado renasce para possibilitar um futuro; e o de Mate Masie, representando o provérbio “Eu guardo aquilo que ouço” e se assegurando da compreensão e da transmissão dessa tecnologia pelo passado-presente-futuro fundidos na figura de uma heroína negra periférica brasileira que carrega em si o poder da semente da agência política tanto individual como coletiva, e sua efetiva capacidade de transformar o mundo.

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Impressões Aleatórias

Escrevendo aleatoriamente sobre livros que chegam ao sabor do vento. Por Alexandre Boide