O rancor é verde, o cinismo é amarelo

Impressões Aleatórias
7 min readNov 14, 2019

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Nas semanas que antecederam as eleições de 2018, uma frase que circulou em profusão pelas redes sociais dizia algo do tipo: “Quem não está apavorado não entendeu o que está acontecendo”. Era uma afirmação direta e autoexplicativa, mas o óbvio nem sempre é tão fácil de perceber no meio de uma escalada de insensatez coletiva. Um dos mestres do jornalismo alternativo, o estadunidense Hunter S. Thompson, tinha uma espécie de lema que, à sua maneira característica, fornecia uma chave interpretativa para essa questão: “Quando o lance fica esquisito, o esquisitão vira o profissional da parada” (em uma tradução absurdamente licenciosa). Afinal, se as palavras são sequestradas, esvaziadas de sentido e enfileiradas como simulacros ocos (como aconteceu no Brasil ao longo desta década com termos como “povo”, “democracia”, “justiça” etc.), o jargão que até pouco tempo antes era linguagem corrente passa a servir apenas para normalizar o que é aberrante. No mesmo tom asséptico e estéril de sempre, falava-se em “agendas dos candidatos”, em “plataformas de governo” e em “alianças e composições eleitorais”, como se estivesse havendo uma campanha como qualquer outra, como se por baixo da superfície o cerne do discurso já não tivesse sido implodido e substituído por um caldo tóxico de ressentimentos e fantasias violentas.

Hoje nem aqueles que na ocasião não entenderam o que estava acontecendo podem negar que o lance ficou esquisito, e a sensibilidade de um esquisitaço como Hunter Thompson sem dúvida teria muito a dizer sobre isso. Aliás, o primeiro (e talvez único) jornalista gonzo passou pela América do Sul em um tempo igualmente esquisito — a primeira metade da década de 1960 — e captou de forma precisa o sentimento que alimenta nosso atual revival dos anos de golpes antidemocráticos. Como correspondente estrangeiro, Thompson não demorou a notar que estava num lugar “onde a diferença entre ricos e pobres é gigantesca […] [e] o conceito de privilégios com responsabilidade está sujeito a interpretações estranhas” (cf. A grande caçada aos tubarões. São Paulo: Conrad, 2004). Por não dominar os idiomas locais, seu convívio era limitado a estadunidenses e europeus, cidadãos que por conta da origem e da condição financeira estavam “automaticamente na elite”, e absorviam com a mesma automaticidade os vícios autoritários das classes dominantes locais. E assim vão surgindo personagens como o jovem representante de uma organização assistencialista internacional que dispara o seguinte discurso: “Vim pra cá como um verdadeiro esquerdista inconsequente. Em seis meses, virei um conservador linha-dura. Essas pessoas não sabem do que estou falando, não se ajudam e só querem meu dinheiro. Agora tudo o que eu quero é cair fora”. Onde será que já ouvimos isso antes? Outra figura é uma madame estadunidense morando no Brasil, que declarou a uma reportagem de 1963: “Sei que é bobagem gritar com a empregada toda vez que ela comete um erro. Mas ela é preguiçosa, e quero que saiba que estou de olho. Com essa gente, é disciplina ou anarquia”. Até os elementos da base da pirâmide alimentar do dinheiro graúdo, como um trainee de um banco multinacional, precisava tomar conhecimento assim que punha os pés no continente da opinião mais disseminada sobre as populações sudacas: “São, sem exceção, um bando de ingratos, escrotos, burros e desonestos”.

Cortemos para 2010. A elite continuava confortavelmente alojada em seu enclave conservador linha-dura. A madame continuava maltratando a empregada. O jovem bom samaritano (transmutado na figura do jovem empreendedor bem intencionado) continuava se considerando incompreendido e queria cair fora. O engravatado do mercado financeiro continuava se sentindo uma ilha de inteligência e honestidade, cercado por um mar de imbecis e aproveitadores por todos os lados. Mas “essa gente” indisciplinada e anárquica não parecia mais a mesma. Andava viajando de avião, mandando filhos para a universidade, comprando carros e imóveis financiados. Os donos do poder político-econômico continuavam os mesmos, mas eles queriam também o poder simbólico, não suportavam uma estética governamental que, ainda que não ameaçasse seu status dominante, ostentava no peito uma estrela vermelha e retoricamente rotulou como “nova classe média” a horda invasora dos espaços e usurpadora dos hábitos de consumo. Assim, o rancor do 1% não demorou a transbordar para os 20% — os que até então se convencionava chamar de classe média (e hoje se intitulam “o verdadeiro povo brasileiro”, ou “os cidadãos de bem”). E assim a disputa pela presidência foi dominada pelo rancor, personalizado por um paulista que se via inevitavelmente predestinado ao Palácio do Planalto e que teve seu sonho de consumo invadido por um operário pernambucano. E o balanço informal da derrota se cristalizou em um lema que era um grito de raiva impotente: “Nordestino não é gente, faça um favor a Sp, mate um nordestino afogado!”.

Passamos então a 2014. A raiva impotente já começava a descobrir seu poder destrutivo. Emblematicamente se juntando em grupos com nomes como “revoltados online”, liderados por figuras no mínimo suspeitas, pegaram o vácuo do impulso criado por “essa gente” indisciplinada e anárquica em 2013 e perderam o medo das ruas. No ano seguinte foram aos estádios de futebol, onde não sabiam torcer, mas mostraram orgulhosamente sua cara gritando insultos com sugestões de caráter fálico-anal para uma senhora de 66 anos. Foram às urnas com a raiva acrescida ao rancor, mas isso também não bastou. Ainda faltava um elemento catalisador para destruir de vez os escrúpulos e mostrar que estavam dispostos a tudo para tomar qualquer poder que ainda estivesse com “essa gente”: o cinismo. A senha veio logo depois da apuração dos votos — eles não aceitariam o resultado da eleição. Para vingar a derrota de um notório corrupto, dariam respaldo à ação de notórios corruptos para arrancar do cargo a representante democraticamente vitoriosa sob o cínico manto anticorrupção verde-e-amarelo, sintetizado pelo lema “Somos todos Cunha”.

E assim chegamos a 2018, quando não houve campanha. Os anos acumulados de rancor e cinismo enfim culminaram em insensatez. Os verde-e-amarelos — certa vez definidos como uma abominação cognitiva, ética e política — carregaram sobre os ombros uma aberração típica do sistema que juram odiar, uma figura que sempre se esforçou para mostrar que a baixeza sempre pode descer mais um degrau, e que no papel de um boneco esfaqueado ainda se mostrou vazio o suficiente para que pudesse ser projetada em sua imagem pseudomessiânica qualquer característica adicional passível de ser criada por mentes em estados alterados por estímulos emocionais extremos. Consequência natural do rancor: armas imaginárias em riste. Consequência natural do cinismo: mitomania.

Logo no primeiro capítulo do romance Vapor barato, de Wilson Alves-Bezerra, o protagonista revela a seu psicanalista: “Hoje cuspiram em mim na rua, por causa da minha camisa vermelha. Não é mais porque sou preto, porque sou nordestino. Hoje é porque a minha camisa é vermelha”. O contexto é o momento imediatamente posterior ao golpe parlamentar de 2016, quando “a última década virou uma mentira, eu virei um bandido, e a pior corja da vida pública nacional vem posando de moralizadora”, nas palavras do analisado. A narrativa é construída sobre as sessões de psicanálise desse personagem sem nome, que tem o chão arrancado de seus pés e é lançado no abismo do lado reverso do rancor e cinismo verde-e-amarelos. Forçado a conviver com uma realidade que assume uma textura cada vez mais irreal, encontra no consultório um espaço de refúgio para tentar dar sentido a um ambiente político cada vez mais violento.

Avaliando a dimensão do desmoronamento (“Será que você não percebeu que quando se começou a falar em golpe neste país abriu-se a porteira do inferno?”), ele pressente a volta iminente da predominância do discurso autoritário mais obscurantista (“Tem deputado se arreganhando para o Ustra”) e passa a alternar entre o impulso de autoanulamento do exílio e a determinação suicida do enfrentamento direto. No ambiente de experimento controlado do divã do psicanalista, o regime autoritário de exceção se instala de forma antecipada em sua mente, desestruturando sua sensação de pertencimento a uma sociedade na qual na verdade nunca foi aceito (“[morreu] minha mitologia, minha redenção de classe, minha ilusão de me sentar à mesa com intelectual de outra classe social, de outra geração”). De um momento para o outro, 1964 parece ter uma continuidade direta no presente, “como se os últimos cinquenta anos não tivessem acontecido”. Alternando entre os extremos de partir ou lutar, os movimentos mentais do protagonista acabam presos em um padrão circular, acelerando uma espiral que lança para fora de sua vida tudo o que não cabe na roda-viva da radicalização política (talvez não à toa, o personagem se refere ao país como “Esmerilhândia”), girando em rotação cada vez mais alta até parecer inevitável que o descontrole total sobre a própria condição leve ao colapso do surto.

“É possível adoecer de um país?”, pergunta o texto de quarta capa de Vapor barato. Em 2019, em meio a uma procissão de violências, vexames e bizarrias no noticiário que dá um novo sentido ao lema “Amanhã vai ser maior”, uma frase que circula nas redes sociais (embora não em profusão, pelo menos ainda) diz mais ou menos o seguinte: “As pessoas estão ficando doentes, cuidem da sua saúde mental”. Ao custo do risco à nossa sanidade, seguindo no rastro do protagonista do romance, a nós só parece caber tentar superar a perplexidade e (re)conhecer o território em que pisamos (ou submergimos), talvez ressuscitando (e adaptando levemente) uma fala emblemática de um filme hoje já um tanto datado do fim dos anos 90: “Bem-vindo ao deserto do surreal”.

Título: Vapor barato

Autor: Wilson Alves-Bezerra

Editora: Iluminuras (2018, 140 págs.)

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Written by Impressões Aleatórias

Escrevendo aleatoriamente sobre livros que chegam ao sabor do vento. Por Alexandre Boide

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