O vírus da linguagem

Impressões Aleatórias
3 min readApr 3, 2024

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Nos anos 1990, era uma piada corrente em São Paulo (a depender dos círculos que você frequentava, claro): no caso de um ataque nuclear, só vão sobrar as baratas e os noias. E, quase trinta anos depois, eis que aparece de novo, como mote de um livro. Não exatamente nesses termos, claro, nem se limitando a isso. Ou seja, o pressuposto obviamente não é esse, fui só eu que lembrei da piada e fiquei com ela na cabeça durante a leitura... Enfim, no universo ficcional de A língua submersa, de Manoel Herzog, o ataque nuclear foi contra as calotas polares, a maior parte da humanidade morreu debaixo d’água e, sim, lá estão eles — os noias. Só que vêm acompanhados de uma outra parcela de brasileiros que, como diríamos no nosso elegantíssimo falar paulistano do fim do século passado, parece “brotar dos bueiros”: os evangélicos neopentecostais. E são esses que mandam na parada, mancomunados com os chineses. Sobre as baratas, não se sabe exatamente (no artifício/truque dos mundos ficcionais, nada precisa ser tão detalhado, até porque os leitores só veem o que o autor/prestidigitador quiser que vejam).

Mas tudo isso quem abrir o livro e começar a ler vai encontrar logo de cara, e no melhor estilo de humor profano que consagrou o autor do em-breve-clássico Companhia Brasileira de Alquimia. Em uma série de sagas pessoais entrelaçadas e complementares, navegamos (às vezes literalmente) por um turbilhão cômico e absurdo de caos/ordem (um caos ordenado, ou uma ordem caótica, caso as duas definições não sejam exatamente a mesma coisa). E, no decorrer da trama, se por um lado os elementos da comédia colaboram para levar o livro adiante e amplifica o prazer da leitura, por outro, muitas vezes acaba conduzindo a um impasse: a lente do humor cria uma deformação tão poderosa que, se levada ao extremo, vai chegar ao ponto em que o enredo vira um monstrinho que não tem mais como parar de pé. Nesses casos, a comédia termina em explosão. Pode ser uma explosão escancarada, que nos leva ao pastelão; ou uma explosão descontrolada, que nos leva ao nonsense; ou (meu recurso preferido), uma implosão sobre si mesma, que nos leva a revisitar com outros olhos tudo o que vimos até então. E Manoel Herzog é sem dúvida um autor de implosões controladas.

Acredito que a ideia de quem comenta um livro nunca é (ou nunca deveria ser, pelo menos) escancarar o elemento chave de uma trama, mas aqui temos o próprio título do livro cumprindo esse papel. A língua em questão é essa que nós ouvimos e falamos todos os dias — os personagens do romance se comunicam num portunhol enlouquecido e histriônico (que inclusive atinge seu efeito humorístico máximo nos trechos mais obscenos). Funcionando como elemento de corrosão interna, quando a língua submersa começa a emergir, ela começa a causar glitches e ruídos cada vez mais inesperados e disruptivos no enredo, até desestabilizar suas estruturas. Recorrendo ao velho Burroughs: “A palavra agora é um vírus […] um organismo parasitário que invade e danifica o sistema nervoso central”. Troque-se o sistema nervoso central pelo cerne de uma narrativa — o pressuposto que a mantém de pé — e é o que temos. Bum.

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Impressões Aleatórias

Escrevendo aleatoriamente sobre livros que chegam ao sabor do vento. Por Alexandre Boide