Outonos da América Latina

Impressões Aleatórias
4 min readSep 11, 2023

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O romance Duas vezes junho, do argentino Martín Kohan (tradução de Marcelo Barbão, Amauta Editorial, 2005), é aberto com a seguinte pergunta: “A que idade se pode começar a torturar uma criança?”. A pergunta ― feita a sério e passada adiante na cadeia de comando ― parece ter o objetivo claro e simples de estabelecer um limite de aceitação de humanidade, ou seja, simplesmente definir quando dar início à desumanização de um corpo saído do corpo de uma “guerrilheira”. Encontrar uma resposta não se mostra assim tão simples, já que “os da lista de espera começariam a pressionar assim que soubessem que o nenê tinha nascido são e que, pelo que se podia ver, ia ter os olhinhos claros”. Mesmo assim, ignorando os horrendos sequestros por participantes do regime ditatorial de crianças nascidas em masmorras como a ESMA na década de 1970, um burocrata militar arrisca sua resposta: “começar com crianças que já saibam falar. Antes de saber falar, seria um esforço inútil”.

Em Setenta, romance de Henrique Schneider, a desumanização através da tortura nos porões da ditadura segue o mesmo princípio de “obter a confissão de prisioneiros nesta guerra que estamos”, ainda que temperada com frases de deboche: “Calma, não vai gastar o prisioneiro logo de uma vez”; ou “Não vai desmontar ele antes da hora”; ou “Deixa eu só enfiar os fios no rabo dele e ver o que acontece”… Em ambos os casos, porém, com ou sem risos, corpos humanos são tratados como brinquedos a ser manipulados e espremidos até falar a frase que se deseja ouvir. Afinal, “pendurar o pedaço de carne é moleza. Mas […] tem que saber usar bem todas as técnicas para que se consiga um bom resultado e o vivente não se transforme num morrente”.

No romance brasileiro, a prisão por engano de um bancário confundido com um “terrorista” funciona como um momento de um confronto com uma verdade pressentida porém ignorada, de um contato em primeira mão com um dos pilares do regime (no livro argentino, isso se dá com a convocação de um jovem para o serviço militar). “Não existe tortura no Brasil”, garantiu um de seus comandantes quando se instituiu sua prática; quando se tornou impossível negar o óbvio, o pretexto passou a ser: “Se não agíssemos drasticamente, até hoje teríamos o terrorismo”. E, por falar em obviedades, originalmente, Setenta foi publicado em 2017 ― um antes, portanto, de ser possível afirmar como óbvia a verdade que já se pressentia: os eleitores brasileiros são capazes de aprovar o emprego sistemático de um crime contra a humanidade como política de Estado.

Em junho de 1970, o protagonista do romance é solto em Porto Alegre em um momento de sentimento triunfante, pouco antes da final da Copa do Mundo, quando a seleção brasileira tinha vencido todos os jogos anteriores, o título “parecia ser questão de aguardar mais noventa minutos” e as pessoas podiam gritar diante da televisão alegando não saber “dos gritos que acontecem nos porões próximos”. Em junho de 1978, o jovem narrador militar argentino circula por uma noite em que o sentimento é de choque e dúvida, em que a campanha da seleção de seu país, que mais tarde se revelaria vitoriosa, é maculada por uma derrota na primeira fase do torneio, e as pessoas “não podiam acreditar no que havia ocorrido, ainda que, com seus próprios olhos, acabavam de vê-lo e então sentiam que não podiam acreditar em nada mais”.

Ambos os países, passado o inverno da ditadura, saíram com o mesmo grito estrangulado da garganta: “Nunca mais” ― na Argentina, com o “Informe Sabato”, e no Brasil com o relatório do projeto encabeçado pelo bispo católico Paulo Evaristo Arns. Mas o outono sempre vem, e com ele as armadilhas do inverno passado. Revivendo a retórica da Guerra Fria, e reabilitando a “teoria dos dois demônios”, aí está de novo a extrema direita na América Latina ― quando não no poder, ao menos com poder. E, se hoje se produz no Brasil avalanches de ficção centradas nas atrocidades (sociais, político-econômicas e, principalmente, criminosas) da ditadura militar, é porque se sabe comprovadamente que a palavra de ordem da primavera passada esconde um perigoso parêntese: “Nunca mais (a não ser quando começa a parecer de novo uma boa ideia)”.

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Impressões Aleatórias

Escrevendo aleatoriamente sobre livros que chegam ao sabor do vento. Por Alexandre Boide