Sobre imposturas e explosões

Impressões Aleatórias
3 min readJun 5, 2024

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Entre as classes ociosas, existe uma categoria que é um elefante em muitas salas, em especial quando falamos de livros: a dos relutantes. Basicamente, uma casta de burgueses ― muitas vezes entediados, geralmente herdeiros ― que por algum motivo não se interessam pelo jogo da acumulação de capital que corre nas veias de suas famílias e decidem se revestir da respeitabilidade de um cidadão produtivo com o envolvimento em alguma atividade cultural: um patronato em um museu, ou uma orquestra; ou, no caso de um empreendimento mais autoral no ramo da economia criativa, a criação de uma galeria de arte, uma marca de alta costura, uma produtora de cinema ou… uma editora de livros, claro.

O romance O polvo, de Diogo Santiago, trata justamente dessa classe de herdeiros ociosos, e talvez da única forma possível: a sátira. Seus personagens circulam por meios privilegiados de uma cidade não nomeada, mas provavelmente reconhecível: universidades, bares, cafés e restaurantes badalados com seus nomes e modismos estapafúrdios ― enfim, todos os estabelecimentos “da ponte para cá” que têm estampado nas vitrines um aviso invisível, mas que todos conseguem ler muito bem: pobre aqui, só a trabalho.

Sua protagonista é uma ociosa relutante que, para disfarçar o “eflúvio de enxofre que emana da herança”, se pendura no cabide de emprego de uma repartição pública cuja verba ela sangra sem constrangimento, comparecendo poucas vezes ao mês sem precisar bater ponto nem fazer quase nada. Confrontadora, se define como uma “guerrilheira infatigável” e não tem dúvidas quanto à “importância de seu papel na luta feminina pela emancipação definitiva”. Entre as fofocas e intrigas que ocupam boa parte de seu tempo, busca apoiar todas as causas certas e escreve textos histriônicos, saltando de assunto em assunto em arroubos de indignação.

Como toda heroína, ainda que autointitulada, precisa de um antagonista, ela também elege o seu: um editor de livros que ela define em sua retórica vociferante como um “falsário, charlatão travestido de escritor e professor”; ou, se valendo de menos adjetivos, um “empresário do mundo dos livros confeitados que, na busca pela realização de seu sonho pueril, lamenta porque a verba concedida pelos fundos públicos de fomento à cultura é sempre desproporcional à envergadura de seus ‘delírios’”.

Decidida a expor a impostura daquele que chama de “herdeiro fantasiado de militante alternativo”, arquiteta sua vingança com uma trama para empastelar o lançamento do mais novo livro-fetiche de seu desafeto, a ser realizado em uma tal Macunaíma Book Store, instalada “num elegante complexo arquitetônico no coração da metrópole” ― afinal, os livros também precisam estar devidamente inseridos no circuito dos privilegiados.

E assim se arma o enredo, se valendo de todos os benefícios da sátira: o humor que confere à narrativa um tom de leveza que impulsiona e acelera a leitura, que permite a inserção de idiossincrasias que cativam a simpatia do leitor e, principalmente, que traz a facilidade de se comunicar com o contemporâneo. É sempre mais fácil ironizar o que está mais próximo, o que há de mais miúdo, de mais trivial no cotidiano ― podendo ir fundo meramente escavando a superfície, já que ali se encontram os sintomas precipitados por causas mais profundas, que podem ficar apenas subentendidas. No entanto, é um gênero que também traz seus perigos: o filtro de exposição ao ridículo pode produzir uma deformação tão grande que a narrativa é levada a um ponto de ruptura. É quando vem a explosão.

E como administrar essa explosão sem criar um grande pastelão? É esse o grande teste da competência de um satirista, e um dos motivos por que é tão difícil escrever humor ― a coisa sempre tende ao caos, e o caos não é facilmente controlável. No romance de Diogo Santiago, isso é feito lançando mão de uma figura que, no contexto da literatura pré-romântica, foi definida como um “personagem que conta a verdade sem saber que conta a verdade”, enunciando um discurso que “na realidade, não tem a vontade da verdade e não a possui nele próprio” ― ou seja, um disseminador do caos. Mas um caos controlado. Uma explosão bem-sucedida.

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Impressões Aleatórias

Escrevendo aleatoriamente sobre livros que chegam ao sabor do vento. Por Alexandre Boide