Uma longa noite

Impressões Aleatórias
2 min readMay 31, 2024

--

O cenário é o fim do mundo, mas não aquele que nos acostumamos a imaginar, com catástrofes cataclísmicas e a extinção da vida. É uma questão de localização mesmo. Dentro da geografia urbana, aquele bairro tão distante da infraestrutura central da cidade que às vezes até a própria pessoa diz que não mora, se esconde. Aqui é Fim-do-Mundo, mas poderia ter o nome de qualquer bairro periférico de um grande centro. E a geografia aqui não é mera questão de coordenadas e distâncias ― é o que determina o tipo de convivência possível.

O céu para os bastardos, de Lilia Guerra, é um romance construído de fora para dentro: parte do bairro para acessar a casa, e da casa para os pensamentos dos moradores, e dos pensamentos para os sentimentos que não transparecem. E é dessa intersecção entre o social e o pessoal e privado que a narrativa extrai sua maior força, depois de instalada uma fissura que faz surgir uma ameaça de rejeição e ostracismo para as vítimas colaterais de uma explosão de violência.

É nesse terreno pantanoso que se encontra a protagonista de uma narrativa de múltiplos saltos temporais, mas que tem quase todo seu tempo presente centrado em uma única noite, no velório de uma pessoa popular e respeitada no bairro. E é a partir da análise dos espaços por onde circula que ela começa a análise de seu acerto de contas consigo mesma e com o mundo: “no bairro dos bacanas […] mais uma Maria vestindo o uniforme azul-marinho”; no seu pedaço, “conhecedora das plantas, procurada para receitar banhos e garrafadas”, alguém que compreende como poucos “Fim-do-Mundo e a gente que vive aqui” e que conhece “ao menos de vista, quase todos os moradores dos entornos. Os comerciantes. Cães e gatos vadios. Até mesmo algumas aves”.

Seu olhar arguto serve como guia para ir desbravando o ajuntamento humano que se forma no velório. Sua memória prodigiosa atravessa gerações, destacando as relações de parentesco e de amizade. Sua visão de mundo lhe permite analisar a fundo as precariedades do lugar onde vive, mas também apreciar, sem romantizar, o tipo de sociabilidade estabelecido naquele espaço periférico. Seus sentimentos, porém, parecem sempre fugidios. Suas confissões são sempre interrompidas pela culpa, que a lançou numa longa noite de sua existência, da qual ela não sabe como vai emergir.

--

--

Impressões Aleatórias

Escrevendo aleatoriamente sobre livros que chegam ao sabor do vento. Por Alexandre Boide